quarta-feira, 18 de outubro de 2023

O mito das ilhas grandes e das ilhas pequenas

 


Publicado no "Diário Insular" de 18 de Outubro de 2023

No imaginário dos açorianos, há ilhas que têm sido privilegiadas e, portanto, fontes de maior riqueza e outras têm sido esquecidas, logo mais pobres e com menos rendimentos. O próprio discurso popular e político frequentemente se refere às ilhas grandes e ilhas pequenas, percebendo-se claramente que não se trata apenas do tamanho geográfico mas também da sua dimensão económica.

O fenómeno é sentido entre várias ilhas e, por vezes, dentro da própria ilha, quando têm mais de um concelho e todos apontam S. Miguel como a ilha com mais investimentos e com mais poder político e económico.

 

Os números porém não confirmam, totalmente, essa ideia. O PIB per capite em S. Miguel não é muito superior ao das outras ilhas -- e nem sequer é o mais elevado -- e são os concelhos de S. Miguel onde se registam as percentagens mais elevadas de beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI) e do Rendimento Mínimo garantido (RMG). Estes números têm vindo a diminuir desde 2018, mas ainda são os mais elevados da Região e do país.

A ideia de que S. Miguel é a ilha com mais poder económico e mais investimentos, vem de longa data. Antes mesmo da autonomia, os terceirenses se queixavam que S. Miguel lhes tinha roubado as fábricas do açúcar e do álcool e depois da autonomia a ideia volta a sentir-se quando, depois de feitos os portos e outros investimentos estruturais nas ilhas pequenas, os investimentos se voltaram para S. Miguel que, na altura, tinha sido visivelmente penalizada.

Depois, essa ideia foi-se desvanecendo, muito pelo contributo das viagens de jovens que passaram a percorrer as ilhas nas competições desportivas, da generalização das viagens aéreas e da introdução dos ferries que deu a conhecer a realidade das ilhas a muito gente.

 

Turismo reacende bairrismos

Mas, recentemente, o turismo, onde S. Miguel surge com números muito acima das outras ilhas e às opções políticas relativamente às ligações aéreas, a questão volta a levantar-se.

A vincar este cenário, surge a passagem de cruzeiros, chegando a ver-se 4 e 5  barcos, atracados no Porto de Ponta Delgada acompanhando-se as notícias com imagens com um grande volume de turistas nas ruas e nos pontos turísticos mais importantes da ilha.

Há que reconhecer que o cais construído no porto de Ponta Delgada foi uma obra feliz, quer do ponto de vista estético, criando uma paisagem construída apelativa e foi também uma obra funcional, porque os turistas desembarcam praticamente no centro da cidade, ou têm os autocarros logo à saída, que os levam a passeios onde enchem os olhos e as máquinas fotográficas de paisagens magníficas. Tem tudo para funcionar.

Ora, os terceirenses acham que esse movimento teria sentido, também, pelo menos em parte, em Angra do Heroísmo, podendo oferecer-se o facto de ser cidade Património Mundial e ter também paisagens e lugares de interesse turístico únicos como o Algar Carvão e a Base das Lajes com toda a sua história que voltou a colocar as Terceira nos mapas da estratégia mundial. A determinada altura chegou a ser prometida a construção de um cais de cruzeiros em Angra, embora poucos acreditassem ser possível e o tempo veio a comprovar que nunca passou de uma promessa.

Na verdade, nesse particular pode afirmar-se que o turismo nunca teve uma política coerente e desde há muito se percebeu que houve uma nítido favorecimento de S. Miguel, quer nas ligações aéreas com o exterior, quer nas ligações inter-ilhas.

Todavia, hoje, há quem tenha dúvidas se essa opção foi a melhor para S. Miguel. (Um assunto que abordaremos noutro trabalho).

 

Os números contraditórios

 

Mas, afinal o que faz com que S. Miguel não tenha um PIB mais elevado e porque tem o maior número de beneficiários do RSI.

Na verdade, quando se fala de S. Miguel, em termos económicos e desenvolvimento, fala-se de Ponta Delgada e um pouco da Ribeira Grande, pela zona industrial, todos os restantes concelhos são mais pobres e alguns têm menos recursos do que muitas das ditas ilhas pequenas.

Ponta Delgada é sede do governo e vale pelo número de funcionários públicos, que são um factor importante na constituição do PIB. As restantes actividades, que poderiam ser de igual modo fonte de riqueza, designadamente empresas públicas e privadas, apesar da sua dimensão, estão a passar dificuldades financeiras e como tal, a sua participação na economia foi ficando reduzida.

Naturalmente que, do mesmo modo alguns sectores que em tempos deram emprego a muita gente como a agricultura, a construção e alguma indústria, foram caindo e a sua quebra, naturalmente também foi maior em S. Miguel e faz com que mais gente ficasse sem emprego e mais famílias tenham de recorrer ao RSI. Acresce que S. Miguel é historicamente uma ilha de grandes desigualdades sociais e com situações de pobreza que já se faziam sentir antes da autonomia e nunca foram resolvidas de forma estrutural.

A Terceira, por outro lado, teve sempre uma economia socialmente mais equilibrada e durante muitos anos a base das Lajes com um significativo número de trabalhadores portugueses, espalhados por várias freguesias, com vencimentos acima da média, constituíam um rendimento significativo. Todos os dias um grande número de autocarros transportava para as Lajes várias dezenas de trabalhadores de quase todas as localidades.

Festas são importante motor da economia.

Finalmente, as festas da Terceira -- que tanto se critica --, sejam as festas de Angra e da Praia ou as das diversas localidades, são um importante suporte da economia da ilha, dado que conseguem fazer movimentar diversas actividades paralelas, animam o comércio e movimentam quantias apreciáveis de dinheiro nos mais diversos sectores.

Já existem alguns estudo preliminares sobre o efeito das festas na actividade económica ilha, mas é fácil intuir que será naturalmente a segunda economia, logo a seguir à agropecuária.

Políticos desconhecem as ilhas

Apesar dos números, as pessoas não ficam convencidas e continuam a achar que o Governo e outras entidades privilegiam de forma muito evidente a ilha de S. Miguel e cada vez mais se afirma -- e muitos casos com razão -- que se está muito longe do desenvolvimento harmónico que se preconizava.

Isto acontece, também, porque o discurso não é, nem nunca foi, o adequado e porque as pessoas que têm poder de decisão conhecem mal as ilhas. Vêem-nas sempre através de uma janela de Ponta Delgada e dos filtros dos dirigentes, mas desconhecem o que as pessoas realmente pensam.

Também nunca houve um sentido harmónico porque a maioria das decisões são em função de um calendário eleitoral e das pressões dos dirigentes políticos.

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